segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Mem de Sá, João Ramalho, Domingo Jorge Velhos, os bandeirantes e inúmeros outros facínoras a serviço da colonização, do império; portanto, do Capitalismo.

Aldo Santos usa a tribuna para cobrar da presidenta Dilma o feriado Nacional do dia 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra e repudia o gasto de 28 milhões com a reforma da Câmara Municipal de SBCampo.
Na noite do dia 04 de novembro de 2011, o teatro Cacilda Becker foi palco da celebração da Sessão da Consciência Negra em Sbcampo do campo.
O vereador José Ferreira abriu os trabalhos da sessão, agradecendo a presença de todos e destacou em sua fala o histórico da luta desenvolvida na cidade, que teve início com o vereador Aldo Santos, 1989 com a realização da primeira Sessão e Comemoração Oficial da cidade.
O vereador Ary de Oliveira, também fez uso da palavra e disse que essa sessão vem de longe, desde o tempo do ex-vereador Aldo Santos que deu o ponta-pé inicial nesse debate. “[...] me lembro do Aldo Santos realizando essa sessão com apenas oito pessoas, mais ele não desistiu”.
Para o Diretor-presidente da Fundação Criança, Ariel de Castro Alves, esse é um momento importante para a cidade. Destacou a presença do ex-vereador Aldo Santos na atividade, e, rememorou os grandes momentos de luta com ocupações ,prisões e, ironicamente perguntou se a medalha João Ramalho já foi extinta ou não?
Sr. Wilson da Ama fez um belo relato, falando da identidade do negro que vem sendo conquistada recentemente no Brasil e citou sua própria família. Lembrou de fatos de combate ao racismo, onde na ocasião ele entrou em contato com o vereador Aldo Santos e José ferreira, que prontamente o ajudou no referido caso. Segundo ele essa mentalidade de luta é muito importante.
O Ex-vereador Aldo Santos fez uso da palavra, agradeceu a homenagem, que recebeu, juntamente com outras pessoas e historicisou sobre o significado dessa data.
“Em 1989 quando entrei nesta casa, uma das minhas primeiras resoluções foi instituir na cidade A Semana da Consciência Negra, que foi comemorado na Câmara Municipal em 20 de novembro de 1989, com representação de vários segmentos da sociedade. Apresentei também o projeto da Capoeira nas Escolas, que infelizmente foi rejeitado pelos vereadores da época. Entendo inclusive que outro vereador deveria retomar esse projeto.
Apresentei o projeto pelo Feriado Municipal na Cidade, uma das primeiras Cidades a apresentar tal lei, que infelizmente foi boicotada pelos vereadores da época, bem como pela administração. Foram realizadas grandes atividades populares, sindicais e estudantis.
Além desses pontos, Aldo Santos ainda lutou pelas cotas na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, que ainda se mantém discreta e o silêncio perdura.”
Além desses fatos,nesse período, o Vereador foi agredido pelo renomado jornalista Célio Franco, que publicou um texto no jornal eletrônico Cliqueabc, desqualificando a sua luta, agredindo o movimento e ridicularizando o Projeto pelo feriado Municipal de 20 de novembro, bem como a figura de Zumbi dos Palmares.
O Ex-vereador de São Caetano do Sul, Dr. Horacio Neto, solidário ao até então vereador Aldo Santos, ajuizou uma ação de reparação por danos morais em face da agressão dispensada ao mesmo. Da sentença restou a condenação ao pagamento por danos morais, sendo ainda obrigado a publicar uma retratação no mesmo veículo eletrônico por cinco dias e com mesma quantidade de toques e linhas àquele que deu origem ao processo.
Além desses fatos históricos e merecedores de registro por todas as forças democráticas, Aldo Santos cobrou o Feriado Nacional que o presidente anterior não instituiu e que a presidenta Dilma assine urgentemente essa lei federal, para evitar que as elites e o comércio nas referidas Cidades onde existe o feriado municipal, distorçam a finalidade de nossa luta e comemorem em outras datas, que não o 20 de novembro.
Destacou ainda que enquanto os negros da periferia estão excluídos por falta de investimento do poder público, a Câmara de São Bernardo do Campo inicia uma reforma de 28 milhões em seu prédio, construindo um Castelinho, enquanto o povo pobre está abandonado a sua própria sorte. Enquanto filhos e filhas e guerreiros de Zumbi, não podemos concordar com essa reforma que é um escárnio para com os tributos pagos pelos moradores da cidade.
O presidente municipal do PT Salatiel fez o uso da palavra, reconheceu a contribuição histórica do ex-vereador e afirmou que também é favorável que a presidenta Dilma, de fato, institua o feriado Nacional.
Concomitantemente às atividades políticas, várias apresentações culturais, religiosas e de capoeira exaltaram a celebração de mais uma atividade marcante na cidade de São Bernardo do Campo.
Por fim, convém esclarecer que em relação à Medalha João Ramalho, acima mencionada, continuamos defendendo uma releitura da história e suas referências . É honroso homenagear um munícipe dando uma medalha cuja insígnia representa um personagem que historicamente é acusado de ser traficante de índios e que com o mesmo intento dos bandeirantes dizimaram, escravizaram e exploraram o nosso povo ao longo da historia do Brasil?
Dentre esses personagens destacam-se: Mem de Sá, João Ramalho, Domingo Jorge Velhos, os bandeirantes e inúmeros outros facínoras a serviço da colonização, do império; portanto, do Capitalismo.

Lutar contra o preconceito Racial é preciso!!!

Assessoria de comunicação do Psol de São Bernardo do Campo.

Os direitos humanos dos humanos sem direitos: refugiados e a política do protesto

Direitos Humanos

| Texto 10712 | Cliques: 35 | Postagem: Claudio Palácio

Os direitos humanos dos humanos sem direitos: refugiados e a política do protesto


O artigo discorre sobre a crise contemporânea do processo de institucionalização do discurso dos direitos humanos, vinculada à reprodução de (in)seguranças globais e aos limites da vinculação entre Estado, território e cidadania. Desenvolve o argumento de que a impossibilidade ou a incapacidade de realização dos direitos humanos no contexto de um mundo dividido em Estados territoriais assenta-se justamente na junção constitutiva que se estabelece entre a noção de cidadania e a noção de humanidade.

Carolina Moulin

Os dilemas daí derivados são elucidados a partir da análise dos recentes protestos de refugiados palestinos no Brasil e de suas principais críticas ao marco de proteção humanitário internacional. Nesse sentido, o artigo corrobora a ideia de que o regime internacional de direitos humanos atuaria, dentro dessa perspectiva crítica, reforçando a ordem política existente, e não subvertendo-a, como imaginam os entusiastas do discurso de direitos humanos como promotor de uma política de emancipação no plano global.

Amamos o Brasil, mas preferimos voltar para os campos de concentração.

Esse primeiro grito é um pedido de socorro ao Brasil; o segundo será um grito com pedido de justiça ao mundo.

Slogans de protesto nas manifestações dos refugiados palestinos em Brasília, 2008.

Walter Mignolo (2000) sugere que o discurso de direitos humanos, embora fundamentado na ideia de direitos subjetivos, universais e inclusivos, não representa, em si mesmo, uma política alternativa ao paradigma do mundo colonial moderno. Isto quer dizer que, apesar de ancorado em uma premissa normativa emancipatória, a emergência de um regime internacional de proteção à pessoa humana respondeu (e responde), prioritariamente, às demandas contextuais de rearticulação das relações de poder no plano internacional e de manutenção do núcleo duro do design (neo)liberal. Tal núcleo articula-se, sobretudo, na celebrada tríade Estado-nação-território, por meio da qual a realização dos direitos subjetivos depende das relações de pertencimento estabelecidas entre sujeitos e comunidades políticas exclusivas (e excludentes). Essa tese ecoa as preocupações já avançadas, por exemplo, por Hannah Arendt (2004 [1948]). Analisando as perplexidades e as violências causadas pela Segunda Guerra Mundial, Arendt problematiza a questão do sujeito dos direitos humanos para demonstrar a sua impossibilidade no mundo colonial moderno. A pergunta se volta, então, para a definição de quem são esses "seres humanos" para quem a efetivação e a implementação de direitos se faz possível e necessária.

Para ambos os autores, a (in)segurança supostamente solucionada pela prática humanitária acaba por perpetuar o problema da realização dos direitos humanos, haja vista que aqueles que mais deles necessitam são justamente os que menos poderão por eles ser assistidos. Em termos gerais, pode-se afirmar que o sujeito dos direitos humanos é, quase que por necessidade, o cidadão, excluindo dessa maneira um enorme contingente de pessoas e grupos para os quais a cidadania possui pouco ou nenhum significado. A proliferação dessas exterioridades (reproduzidas pela violência fundacional do moderno sistema de Estados) é evidenciada pelo crescimento do número de populações marginalizadas e excluídas do marco de proteção da cidadania. Podemos incluir nesse rol as mais diversas categorias de indivíduos e grupos sociais, que detêm, via de regra, uma relação conflitiva e ambígua com autoridades soberanas. Povos indígenas, expropriados e marginalizados pelos processos de colonização e destituição de suas culturas e territórios, processos esses centrais para a formação da ordem internacional e das estruturas de poder contemporâneas; refugiados, expulsos de suas terras, expurgados de suas comunidades e gerenciados como efeito colateral das práticas violentas de reconstituição das fronteiras identitárias e políticas; migrantes econômicos, em particular aqueles sem status, indocumentados, vivendo às margens das estruturas da divisão de trabalho global e cuja expropriação e subalteridade se fazem necessárias para a manutenção do sistema produtivo transnacionalizado; e, ainda, um grupo cada vez mais abrangente de cidadãos de segunda classe (ou subcidadãos), para os quais as promessas de inclusão nunca se efetivaram, seja por táticas de exclusão política, econômica e social, seja por estratégias de reclusão e contenção territorial1 (da favela, do campo, do sistema penitenciário, dos hospitais psiquiátricos).

Essa crise, nunca resolvida, da expansão dos humanos sem direitos para os direitos humanos é hoje também global (ou talvez sempre tenha sido). Boaventura de Souza Santos (2004) define a mundialização desse fenômeno como a "transnacionalização do Terceiro Mundo". Beck (2000) fala da "brazilianização da política mundial"; Wacquant (2008) analisa a redução da política internacional ao gerenciamento de uma política disciplinar penal, cujo objetivo central é controle, contenção e prevenção do risco eminente que referidos grupos podem trazer para a ordem e a estabilidade do sistema doméstico e internacional. De toda maneira, o que todas essas contribuições indicam são dois processos concomitantes dessa crise. O primeiro refere-se à sua expansão nas dimensões espaço-temporais, que indicam a globalização dos efeitos crescentes da interpenetração de povos, culturas e marginalidades para além das divisões tradicionais de um mundo bipolarizado (Ocidente/Oriente, Primeiro/Terceiro Mundos, Norte/Sul). Nesse sentido, países desenvolvidos se vêem constantemente achacados pela proliferação dos guetos, dos banlieues, dos bairros de imigrantes, da internalização das desigualdades que, no imaginário moderno colonial, deveriam ser contidas na racialização da diferença e na sua reterritorialização em espaços periféricos. Poderíamos falar, dessa maneira, de um processo crescente de interiorização das externalidades que, por sua vez, acaba fomentando um discurso securitário fundado em uma cultura do medo e em uma geografia do ódio (Appadurai, 2006).

O segundo processo refere-se às limitações da solução moderna para o problema dos direitos, na medida em que Estados-nação não mais se mostram capazes de garantir os termos do contrato social, ou seja, de prover para seus clientes (cidadãos) as garantias fundamentais nas quais se ancoram o poder e a legitimidade do governo da coisa pública. Em outras palavras, assistimos à proliferação de sociedades de (in)segurança, cada vez mais articuladas ao discurso dos direitos humanos e do direito humanitário como estratégias disciplinadoras (e não mais emancipatórias). E observamos, quase que atônitos, o sentimento de paralisia e descrença para com os rumos dos (des)governos políticos, aqui e acolá. Nesse contexto, indago que, talvez, as alternativas e as respostas aos problemas prementes da política de (in)segurança mundial, e em particular da dinâmica global da proteção aos direitos da pessoa humana, esteja justamente no olhar atento das estratégias desenvolvidas por esses grupos de supostos "humanos sem direitos".

Partha Chatterjee sugere que parte dessas estratégias reside nos processos de negociação que se estabelecem entre os grupos marginais da política democrática liberal e os núcleos institucionais sedimentados nas figuras dos grupos de interesse e do próprio Estado. Para ele, esses sujeitos, que detêm uma relação ambígua e incompleta com os discursos de (e dos) direitos, compõem em larga escala o espaço atual do desenrolar da política e, em suas articulações, redefinem o próprio conteúdo do político. A crítica se volta, portanto, para a linguagem e os instrumentos convencionais de análise política que parecem preocupar-se apenas com um grupo relativamente restrito e culturalmente equipado (Chatterjee, 2004, p. 39) de sujeitos dotados de direitos (humanos) e que têm acesso aos mecanismos de participação no processo decisório. Conceitos como sociedade civil buscam precisamente mapear essas interações e o impacto desses grupos de cidadãos sobre a distribuição dos recursos sociais. Não obstante, na medida em que proliferam as desigualdades e as (in)seguranças por elas trazidas, as limitações analíticas se fazem óbvias e denotam a necessidade de se repensar os mecanismos de negociação social, sobretudo junto a grupos que não se articulam dentro dos quadrantes de civilidade, transparência e representatividade tão caros (e centrais) ao processo democrático liberal (Moulin e Nyers, 2007).

Nesse contexto, emerge a sociedade política, composta por indivíduos e grupos de subcidadãos (ou de não cidadãos), que são cuidados e controlados por agências governamentais e, via de regra, convertidos em populações subjugadas às tecnologias de controle do poder soberano. Embora sua vinculação com as estruturas constitucionais seja tênue, a presença da sociedade política mostra-se bastante real no espaço territorial do Estado. Suas reivindicações e demandas enquadram-se dentro de uma abordagem governamental, não obstante sejam usualmente feitas em uma linguagem comunal e, sob a ótica das abordagens democráticas, por meio de estratégias não legítimas e muitas vezes irregulares. Ainda, suas associações e intervenções partem de um conjunto de lealdades que, no geral, remontam a conexões comunitárias, ao compartilhamento de um locus subordinado no espaço da cidade, a filiações identitárias, étnicas, familiares e religiosas. Seu modo de presença normalmente envolve uma flexibilidade dos termos do contrato social, a "distorção das regras de convívio" e o recurso a mecanismos de participação que seriam, em qualquer outro contexto, consideradas ilegais. A sociedade política procura, dessa maneira, abarcar essa esfera da política que converte grupos marginais (no duplo sentido da palavra, como aqueles que habitam as margens e que são percebidos como transgressores da ordem estabelecida) em dimensões importantes de exercício da função gerencial e interventora das agências governamentais. Contudo, percebe e considera salutar a influência desses mesmos grupos como elemento transformador e potencialmente inovador no que tange à reconceitualização de uma alteração radical da política contemporânea. O simples fato de que tanto as agências governamentais como grupos de interesse, ONGs e demais membros da sociedade civil têm que prestar atenção e negociar com a sociedade política indica que, longe de serem irrelevantes, essas marginalidades, muitas vezes convertidas em fontes de insegurança, são, elas próprias, essenciais para a reprodução das funções governamentais e para o estabelecimento dos próprios limites do discurso dos direitos. Em outras palavras, a presença da sociedade política revela que os direitos humanos dependem da existência de seres humanos sem direitos e que, na sua luta por inclusão ou por alternativas, eles reconfiguram o próprio conteúdo do discurso dos direitos. É dessa tensão produtiva que emergem talvez potenciais opções emancipatórias.

Não devemos contudo sobre-estimar essas mesmas potencialidades. A interrupção promovida pela sociedade política é tênue, ambígua e temporária. Repleta de paradoxos, a política dos governados está intrinsecamente ligada à política dos que governam e, muitas vezes, acaba por ela sendo subsumida. Se não altera as regras do jogo, a sociedade política mostra, ao menos, a emergência de novos atores, de grupos populacionais que, de forma autônoma, "conferem (a si próprios) os atributos de uma comunidade moral" (Chatterjee, 2004, p.57) e, nesse processo, redefinem as fronteiras do exercício político. Se, de um lado, muitas de suas reivindicações não proveem a solução para o problema dos direitos humanos, de outro, chamam atenção para o nó nevrálgico que explica a vinculação, quase umbilical, entre os humanos sem direitos como fonte das (in)seguranças políticas e sociais, isto é, para o ponto de inflexão que separa governados e cidadãos. Dentre os muitos possíveis grupos que poderiam ser elencados como exemplos das articulações da sociedade política global, o foco desse trabalho reside nas demonstrações de grupos de refugiados. Na seção que se segue, apresento os principais elementos definidores da figura do refugiado, aplicando-os ao contexto das manifestações e dos protestos avançados, entre 2008 e 2009, pela comunidade refugiada palestina no Brasil. A análise desse caso, importante na recente história da proteção humanitária no país, indica algumas das potencialidades e dificuldades envolvidas na formação da sociedade política global e, espero, a urgente necessidade de se repensar as fronteiras dos direitos humanos e os seus próprios termos.

Caridade, protestos e a luta pelo "direito a ter direitos"

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 define em seu artigo 1º (A, 2) que o refugiado é toda pessoa que

[...] devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social e por suas opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, por causa dos ditos temores, não queira recorrer a proteção de tal país; ou que, carecendo de nacionalidade e estando, em consequência de tais acontecimentos, fora do país onde tivera sua residência habitual, não possa ou, por causa dos ditos temores, não queira a ele regressar.

Assim sendo, o refugiado é aquela pessoa que se encontra fora do seu país de nacionalidade e/ou residência e, por medo de perseguição, não pode mais recorrer ao seu governo para obter proteção. Nesse sentido, trata-se de quem perdeu a proteção diplomática de seu país de origem e, como consequência da necessária resolução moderna que atrela o exercício dos direitos humanos ao Estado e ao cidadão (Arendt, 2004 [1948]), se torna, por essa razão, um sujeito sem direitos. É esta condição limiar do refugiado de ser um indivíduo entre soberanos (Haddad, 2008) que o torna figura emblemática das limitações do discurso humanitário.

O refugiado, pois, depende do reconhecimento de seu status (dos motivos fundados e subjetivos do temor que justificam a fuga) por parte de um outro Estado para readquirir, ainda que minimamente, qualquer possibilidade de acesso a direitos básicos. Embora supostamente protegido pelo guarda-chuva do direito humanitário e por agências governamentais internacionais (dentre as quais se destaca o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - Acnur), a retomada de seus direitos básicos depende, prioritariamente, de sua reintegração territorial e, por consequência, jurídica ao espaço da política governamental. Essa reinclusão pode dar-se tanto pelo reconhecimento do status no país de acolhida como por sua reinserção, ainda que temporária, no espaço do campo. Pode, ainda, acontecer em um terceiro país, quando a integração no primeiro país de acolhida ou no campo se mostram insuficientes. Esse último movimento conforma a situação dos refugiados reassentados, tal como é o caso dos refugiados palestinos que chegaram ao final de 2007 no Brasil, provenientes do campo de Rweished na Jordânia.

Os aproximadamente cem refugiados palestinos chegaram ao país como parte do Programa de Reassentamento Solidário, estabelecido pelos países Latino-Americanos em novembro de 2004. O Programa faz parte de processo mais amplo de revisão do marco jurídico regional de proteção a refugiados, iniciado em 2004 e concluído com a Declaração e Plano de Ação do México, assinados pelos representantes nacionais ao final daquele mesmo ano. O programa de Reassentamento respondeu à necessidade de ampliar a coordenação regional no que tocava ao compartilhamento do apoio e da assistência a populações forçosamente deslocadas, com especial ênfase na situação de colombianos em países fronteiriços. Capitaneado pelo Representante do Acnur no Brasil e pelo próprio governo brasileiro, o plano acordado no México tentou retomar um papel mais ativo dos países da região para a resolução de crises humanitárias com foco especial na atenção a populações refugiadas. A aceitação dos reassentados palestinos entra, nesse contexto, na guinada diplomática brasileira ao assumir um papel de liderança regional sobre assuntos humanitários. Embora a política de reassentamento não seja nova (em 1998, reassentados afegãos chegaram ao país, mas o programa não foi bem-sucedido), não resta dúvida de que o processo recente surge a partir de uma ótica regional mais coerente e de uma articulação mais intensa entre governo, organizações da sociedade civil e organizações internacionais.

Os refugiados palestinos foram, assim, incluídos em um programa especial, desenhado pelo período de dois anos, nos quais organizações da sociedade civil, o Acnur e governos seriam responsáveis por prover os meios necessários para sua plena integração à cultura e à sociedade brasileiras. Distribuídos em municípios do interior de São Paulo e Rio Grande do Sul, os refugiados teriam direito a moradia, assistência médica e ajuda de subsistência mensal, além de acesso a programas de aprendizado da língua portuguesa e de integração cultural. Os refugiados palestinos, ao contrário da maioria da população refugiada espontânea no país, já detinham, contudo, uma longa e histórica relação com os mecanismos internacionais de proteção humanitária. Muitos deles, fugindo dos conflitos com Israel e, posteriormente, das duas grandes guerras no Iraque, habitaram os espaços de contenção de campos de refugiados por anos. Conhecedores das estruturas e das regras de proteção humanitária, chegaram ao Brasil com esperanças de mudança, não obstante cientes das difíceis e circunscritas regras do jogo dos direitos humanos internacionais para apátridas e refugiados. Essa trajetória é observada no relato de vida de um dos palestinos reassentados:

Estou refugiado desde 67. Fui refugiado aos 19 anos quando fugi da guerra entre Israel e Palestina indo para o Iraque. Depois fui para Arábia Saudita, Líbia e voltei para o Iraque onde vivi até a invasão dos Estados Unidos, quando tive que fugir e me tornar mais uma vez refugiado na fronteira com a Jordânia no campo Rweished [de refugiados]. Esse campo na fronteira da Jordânia era do exército. Não tinha casa não tinha nada. Só um pedaço de tecido, uma barraquinha que vivíamos dentro dela. Ficamos quatro anos e meio nesse campo [em 2007 ampliou-se a ofensiva contra os campos de refugiados palestinos, com pressões para que perdessem a condição de refugiados palestinos e ganhassem cidadania jordaniana]. (Entrevista, 2009).

É nesse contexto, e com essa bagagem, que os refugiados palestinos chegam para o reassentamento no país. E a história de esperança converte-se em alguns poucos meses numa batalha política conspícua entre eles e as diversas agências governamentais nacionais e internacionais responsáveis pela sua proteção. Em abril de 2008, três refugiados palestinos percorreram de ônibus os mais de mil quilômetros que separam Mogi das Cruzes e Brasília e iniciaram um protesto em frente ao escritório do Acnur na nobre região do Lago Sul na capital federal. Alojados em barracas de plástico e dormindo nas calçadas, os refugiados permaneceram no local por mais de um ano, esperando que suas demandas fossem atendidas. Nesse ínterim, outras famílias juntaram-se ao grupo, entre elas mulheres e crianças (Fernandes, 2009). Reclamavam da falta de assistência recebida da sociedade civil nas comunidades receptoras e da ausência de diálogo com as instituições, em especial com o Acnur. Decidiram assim intervir no processo, impondo sua presença cotidiana na rotina da agência e procurando atrair atenção da mídia e da opinião pública para uma realidade ainda bastante desconhecida da população em geral.

Dentre as diversas demandas avançadas pelo grupo, destacam-se a exigência de tratamento médico adequado e imediato para idosos e doentes, retomada do benefício mensal (suspenso após o início dos protestos), reunificação das famílias separadas no processo de alocação nos municípios do programa de Reassentamento, negociação dos termos da permanência findos os dois anos previstos para a implementação do programa e, principalmente, a discussão sobre o potencial reassentamento para países onde os refugiados possuíam famílias ou para campos montados pelo Acnur. Em suma, as demandas orientavam-se em dois eixos centrais, quais sejam, o da reformulação efetiva do programa de integração e o direito a voz não só sobre os termos dessa integração como também sobre o próprio direito à mobilidade internacional. O primeiro reflete uma longa e já conhecida narrativa das populações refugiadas no Brasil que acabam integradas apenas em outros espaços de exclusão socioeconômica, sobretudo nos grandes centros urbanos do país. Assim, a proteção humanitária concedida acaba tornando (quase) permanente uma situação de marginalidade jurídica, social e racial, comum a outros tantos quase-cidadãos nacionais. Por outro lado, os refugiados questionam a estrutura do marco normativo internacional de proteção à pessoa humana, em particular o do Direito Internacional dos Refugiados, que tende a vincular sua identidade, modos de existência e os próprios destinos de suas vidas individuais e familiares aos ditames das agências governamentais. E esses ditames normalmente restringem a figura do refugiado aos espaços da caridade social e/ou da criminalidade e da segurança (Soguk, 1999; Pratt, 2005; Moulin, 2011). Em qualquer um desses espaços, as populações refugiadas são convertidas em sítios de intervenção, seja do cuidado pastoral das diversas agências por eles responsáveis (Foucault et al., 2007), seja do aparato penal, judicial e disciplinar que visa conter as desordens e as fontes de insegurança à comunidade internacional e hospedeira.

[A situação se complicou] porque até agora nenhuma pessoa do governo se dispôs a ajudar a gente ou encaminhou nossa situação. Isto ocorre porque lei aqui no Brasil é para quem é rico, quem tem poder. Estamos aqui há um ano e sete meses e o governo não nos escuta, só escuta o Acnur. Pelo fato de sermos refugiados pobres o governo brasileiro não olha para nós. Estamos refugiados no Brasil e o governo não deveria deixar a situação chegar neste ponto, o que é algo muito feio para o governo brasileiro e para quem gosta deste país. Agradecemos aos brasileiros. Quem nos ajudou neste período foram nossos vizinhos brasileiros e os amigos que fizemos aqui. Parece que o programa [para refugiados] foi feito por eles. E não por quem ficou de nos acolher e cuidar. Já faz dois meses que não temos nenhum contato com a Acnur. Eles se mudaram [do local onde os refugiados ficaram acampados anteriormente] e só o governo brasileiro sabe onde eles estão. Mas o governo brasileiro não nos procura. O programa vence agora em setembro, vão ser pelo menos cinco meses abandonados. O que vai ser de nós? (Entrevista, 2009).

Os protestos refletem, dessa maneira, uma tentativa dos refugiados de retomar o controle sobre suas vidas e sobre sua mobilidade, em um contexto no qual eles se reconhecem como humanos sem direitos e que, por essa mesma razão, conferem ao grupo os "atributos de uma comunidade" (Chatterjee, 2004). A mobilidade, que confere ao indivíduo a liberdade mais fundamental de escolha, se alça, na experiência do refúgio, à categoria de direito humano mais básico e elementar. Contra a sedentariedade do Estado e da territorialidade soberanas, que presumem a realização dos direitos humanos por meio da cidadania à uma fixidez espacial, os refugiados reclamam pela retomada da autonomia do nomadismo, da condição de exílio como traço permanente e quase inescapável da existência humana, ou, pelo menos, da existência de grande parte da humanidade - em especial, e talvez paradoxalmente, da humanidade para a qual foi negada essa mesma condição, da humanidade impossível e reduzida à vida nua, como salienta Agamben (1998).

Se fizermos uma comparação com esse campo [de Rwesheid] e a situação que enfrentamos aqui no Brasil, nós vivemos muito melhor, com muito mais orgulho, nos sentíamos muito mais humanos lá no campo do que aqui. Porque aqui nós nos sentimos tratados pior do que se trata um animal. Para o animal existem leis, direitos, nós não temos nada. Aqui no Brasil, as Nações Unidas e o governo que nos trouxe nunca nos trataram como humanos, nem protegidos como prometeram. A única coisa que nós queríamos era o orgulho. Mas aqui eu nunca vou encontrar. O Acnur, as Nações Unidas, não nos trata como refugiados, aqui não tivemos nem direitos humanos, então não temos direitos de nada. Nós não aceitamos mais isso, essa situação. Por isso estamos pedindo nossa saída do Brasil. Não é porque não gostamos do Brasil, mas porque fomos maltratados pelas Nações Unidas, por essas ONGs que disseram que nos acolheriam, mas nunca o fizeram (Entrevista, 2009).

Como pensar que os refugiados prefirem viver no campo ao Brasil? Como explicar essa impossibilidade da humanidade mesmo dentro do guarda-chuva protetor do humanitarismo? Como justificar para a comunidade hospedeira essa própria impossibilidade? Com uma narrativa apologética que, ao mesmo tempo em que justifica o fracasso da integração e do discurso de proteção, politiza o direito de escolha sobre a mobilidade e reverte a lógica do cuidado, na qual as opções são dadas aos refugiados, em vez de serem por eles estabelecidas.

Eu peço desculpas por não ter me adaptado. Eu tinha o sonho de ficar no Brasil. Mas agora eu tenho dois desejos: quero voltar para a Palestina ou ir para o campo de refugiados onde eu estava. Torço para que o governo brasileiro nos escute. Esperamos que o governo nos escute e discuta com a gente o nosso problema e deixe realizar uma dessas duas opções. Estamos deprimidos e traumatizados pela tortura psicológica que sofremos (Entrevista, 2009).

Os protestos dos refugiados palestinos, e as narrativas e demandas relativas ao reassentamento e ao aparato de proteção, fornecem um exemplo claro de como a sociedade política opera. Grupos que detêm uma relação tênue com noções de cidadania e que habitam espaços transnacionais de exclusão jurídica e socioeconômica se posicionam no debate político acerca dos limites e potenciais dos direitos humanos, a fim de pressionar agências e instituições domésticas e internacionais responsáveis por sua proteção. Nesse processo, precisam articular suas posições por meio da construção de um senso de comunidade moral, que lhes é conferido pela própria impossibilidade de habitar uma condição de inter, do entre Estados, que é sempre reapropriado sob a ótica do gerenciamento e do disciplinamento desses indivíduos como fontes potenciais de ruptura da fixidez e da ordem internacional dela derivada. Precisam valer-se de estratégias de interrupção, de intervenção radical que se dá pela sua simples presença em espaços não autorizados; pela sua simples demanda como interlocutores de um debate que afeta suas vidas, mas para o qual não são convidados. E, nesse processo, esperam que o seu direito à voz seja garantido, torcem para que sejam escutados.

Cumpre ressaltar, contudo, que a sociedade política funciona, nesse sentido, não só como arena de discussão (ou de alargamento do campo das disputas políticas), mas também como processo de subjetificação ao conferir a esses grupos os atributos necessários que permitem o seu posicionamento como participantes do debate sobre a proteção internacional a refugiados. Permitem ainda a formação de redes de solidariedade, articuladas justamente pela ampliação do seu espaço de atuação. Na medida em que o processo se prolonga no tempo e no espaço novos grupos vão aderindo à causa dos refugiados palestinos. Contam hoje com o apoio de vizinhos (muitos dos quais forneceram comida e apoio material aos protestantes), com a ajuda de associações, com advogado e com a mobilização de outros setores da sociedade (entre eles estudantes universitários e, inclusive, alguns membros do Parlamento). De fato, durante o protesto, os refugiados conseguiram organizar uma reunião com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, ocasião na qual encontraram uma importante porta de entrada para suas demandas nas agências governamentais. Em agosto de 2009, moveram o protesto para o gramado do Itamaraty, na tentativa de mobilizar também a diplomacia brasileira, em especial os diplomatas vinculados ao setor de Organizações Internacionais, para a sua causa. Essa estratégia, embora não tenha aberto as portas dos altos escalões diplomáticos, garantiu uma promessa de encontro entre os refugiados e os membros do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), principal órgão vinculado ao Ministério da Justiça responsável pela população refugiada no país.

Além disso, nota-se um processo crescente de globalização da sociedade política, já que começam a articular-se transnacionalmente com outros grupos de refugiados palestinos e a ter como alvo uma audiência que é cada vez mais global. A imprensa internacional começa a veicular notícias sobre o caso e, com isso, eleva o perfil político da manifestação. Se global em seu escopo, o protesto é também global em seus objetivos, pois visa sobretudo à crítica da estrutura de proteção internacional, focando suas demandas sobre a agência por eles responsável (Acnur) e exigindo uma solução que é também por natureza internacional, qual seja, a de sua mobilidade para além das fronteiras estabelecidas entre o território brasileiro e o campo de onde provêm. Essa é a estratégia indicada em cobertura feita sobre o protesto em frente ao Itamaraty em maio de 2009:

[...] numa estratégia traçada pelos principais dirigentes do Comitê de Apoio aos Refugiados, preferiram fazê-lo usando o elemento surpresa para evitar confronto com as autoridades e principalmente a policia, tendo a imprensa chegado somente após algumas horas, principalmente um grupo de correspondentes estrangeiros que cobria, já à noite, um jantar para diversas autoridades estrangeiras no Itamaraty, onde os refugiados esperavam encontrar o presidente Lula e ter a oportunidade de pedir-lhe ajuda. Durante todo o período grupos de estudantes de várias universidades do DF apareceram para manifestar solidariedade aos refugiados e saber de suas reivindicações. [...] Estudantes do curso de Cinema de uma das principais Faculdades do DF filmaram e entrevistaram alguns dos refugiados e ao advogado Acilino Ribeiro para um documentário que irá concorrer em vários festivais no mundo inteiro, e assim chamar a atenção do mundo sobre a questão dos refugiados, enquanto outros estudantes, desta vez do curso de Fotografia e em número bem maior, em trabalho para o curso fotografaram o momento da instalação do acampamento e tiveram suas fotos enviadas para todas as agências internacionais de notícias e as principais rede de TV do mundo , como a Al Jazira, que as divulgou ontem mesmo. Em entrevista à imprensa alemã, um jornal de Berlim e a um canal de TV que cobre grande parte da Europa, o advogado Acilino Ribeiro informou que a principal reivindicação dos refugiados agora é irem para outro país, pois foram maltratados e abandonados pelo Acnur (Interprensa, 2009).

Esse processo de emergência de uma sociedade política global faz com que seja cada vez mais difícil para as agências governamentais, domésticas e internacionais,esquivar-se do diálogo e de um posicionamento sobre os problemas da política de proteção. Isso não quer dizer, contudo, que os protestantes tenham alterado ou sequer alcançado quaisquer de suas reivindicações. Ao contrário, a impossibilidade de continuação do acampamento, em função de medidas restritivas emitidas por autoridades locais, pôs fim à mobilização. Em face às pressões e aos choques de "lei e ordem", muitos dos protestantes retornaram às suas cidades de reassentamento. O encerramento do protesto, e as muitas vezes trágicas consequências para seus participantes, atesta para a resiliência das dificuldades em transformar as regras do discurso de proteção. O medo irrefutável do uso iminente da força e do aparato coercitivo da violência (como medo das tropas de choque e do cerco policial aos protestos) também restringem sobremaneira as possibilidades estratégicas do grupo. Não eximem também os próprios refugiados da sua incapacidade em traduzir seus traumas e experiências para um contexto no qual a realidade da proteção é de difícil acesso para grande parte da população hospedeira. Entretanto, nenhum desses aspectos (ou deficiências) tornam menos relevante o que suas narrativas podem significar para a reformulação da política de proteção humanitária, sobretudo no contexto regional. Enquanto os círculos diplomáticos aplaudem a liderança humanitária brasileira e a sociedade civil e governos celebram os dez anos da Lei 9474 (Estatuto dos Refugiados), os protestos indicam que, em sociedades periféricas, a letra dos direitos humanos ainda vive como fronteira da utopia, mas agora de uma utopia que tem cara, cor e tom definidos. Nas palavras dos próprios refugiados, ainda nos meses iniciais do acampamento:

Por que é que sempre que alguém, nas posições de alto escalão dos governos, diz alguma coisa, aquilo é considerado verdade? Por que eles não nos perguntam diretamente? Se alguém não sabe o que queremos, é muito simples: venham até nós e perguntem. Durante esses quatro meses que estivemos em Brasília, qualquer um já sabe onde nos encontrar (Blog Refugiados com Dignidade, ago. 2008).

Conclusões

Em uma apresentação recente de trabalho sobre a mobilização política de comunidades deslocadas na Amazônia Oriental, para uma plateia de estudioso da área de relações internacionais, foi-me questionado o porquê da necessidade de se estudar a "voz" desses grupos marginalizados. A pergunta era justificada pelo fato de que referidos grupos nunca tiveram (e portanto não devem ter no futuro próximo) qualquer impacto sobre a formulação de políticas públicas e sobre os rumos da política de poder global. O protesto dos refugiados palestinos no Brasil indica que a proliferação espaço-temporal de uma humanidade sem direitos é, de um lado, resultante das estruturas de poder global e da impossível resolução dos direitos humanos dentro do marco da tríade território-Estado-cidadão. Mas, de outro, também demonstra como essa mesma humanidade tem se convertido em espaço crescente de intervenção política e, mais do que isso, da transnacionalização das funções pastorais das estruturas de governança global. Se os refugiados ainda não tiveram sucesso em alterar essa complexa dinâmica das relações de poder global, acredito, contudo, que a emergência de sua mobilização política global apresenta importantes questionamentos sobre as premissas nas quais se edificam as regras de acesso à mobilidade humana em um mundo interdependente. No mínimo, a emergência de uma sociedade política global, evidenciada pela contra-cultura do protesto de diversos grupos de não e quase-cidadãos nos mais diversos rincões do planeta, torna saliente as indagações sobre os efeitos e as violências engendradas por uma política global de gerenciamento desses sujeitos móveis, com lealdades múltiplas, interpretados e disciplinados como efeitos colaterais e desestabilizadores do sistema internacional. Em outras palavras, os protestos indicam as limitações e as potencialidades abertas pela problematização do direito a ter direitos no plano internacional, sobretudo em contextos nos quais o modelo de gerenciamento (voltado para um marco histórico no qual a mobilidade se articulava nos eixos preexistentes das relações de poder entre Estados, ou seja, no âmbito das relações entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento) parece pouco apropriado para a circulação cada vez mais intensa entre sociedades periféricas.

As consequências dessas mudanças afetam não só as instituições globais de regulação e assistência humanitária, governos nacionais e sociedade civil global, mas também os próprios grupos de refugiados, na medida em que trazem consigo expectativas, muitas vezes frustradas, de acesso a uma proteção jurídica nos moldes das democracias avançadas. A esperança de encontrar no refúgio um espaço de oportunidade, acaba se convertendo em um encontro no qual o medo da morte violenta (princípio estruturante dos modelos convencionais das relações internacionais) é meramente subsumido na luta cotidiana, normalmente travada no espaço da informalidade socioeconômica das marginalidades periféricas, pela sobrevivência identitária e social. Expectativas frustradas pela desmistificação do encontro humanitário, que romantiza a proteção fornecida pelo Estado e e seus representantes, e pelo aumento das barreiras à mobilidade entre Norte e Sul. Assim, esses grupos acabam tendo como último recurso o refúgio nesses "terceiros-mundos transnacionais" (Santos, 2004). Longe de desatar o nó entre (in)seguranças e direitos humanos, a sociedade política global reclama para si essa função e, nesse processo, questiona a capacidade das agências governamentais domésticas e internacionais em lidar com suas demandas num espaço que é, sempre e por necessidade, político. Isso não quer dizer que a sociedade política global, incipiente na sua mobilização, muitas vezes ineficaz em sua implementação, produz as respostas necessárias e viáveis às difíceis perguntas do debate humanitário. Entretanto, demonstra a existência de uma outra política dos direitos, ou como sugere Chatterjee (2005), o retorno a uma política pura, na qual violência, ética e política se encontram na negociação dos termos de uma hospitalidade para com o outro. A realização dos direitos humanos depende assim de se repensar seriamente o que os humanos sem direitos têm a dizer e como o fazem. Talvez na junção dessas múltiplas inseguranças resida o potencial da factibilidade do discurso de direitos ou de uma percepção dos direitos humanos como estratégia de inclusão do estrangeiro, como igual e diferente (Todorov, 1998).

Fonte: Revista Brasileira de Ciências Sociais